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O coração frágil de quem luta contra o câncer

 Ninguém espera entrar no Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp), um espigão de 28 andares que atende 58 mil pacientes por mês na região da Avenida Paulista, e se lembrar da personagem mais serelepe da animação Divertida mente, da Pixar. Isso pode acontecer com quem encontra a paciente Nadja D’Arc Bezerra Cavalcanti, uma auxiliar de dentista aposentada. Nadja destoa no ambiente de dores visíveis e previsíveis.

Aos 57 anos, ela tem um quê de Alegria, a líder de cabelo azul e vestidinho verde-claro que, no filme, é a energia em pessoa. Estão ali o mesmo sorriso largo e o corpo ágil de quem torra calorias antes de armazená-las. Como Alegria, ela é lépida, solar, radiante. Prefere o movimento. Quem a vê não imagina que esteja em tratamento contra a leucemia mieloide aguda. Nadja não precisa de dois segundos para responder o que estaria fazendo se não tivesse a obrigação de ir ao hospital todas as semanas, durante os próximos dois anos, para receber, no bumbum, uma rápida injeção de quimioterápico.

“Voando”, diz.

Nadja não teria a chance de se mover pela vida como um passarinho se seus médicos não estivessem atentos a um problema que mobiliza os mais respeitados oncologistas e cardiologistas em todo o mundo: os danos cardiovasculares provocados pelo tratamento contra o câncer. O conhecimento e a preocupação em torno dos efeitos adversos cresceram nos últimos anos, a ponto de surgir uma subespecialidade médica: a cárdio-oncologia.

As drogas mais antigas podem provocar insuficiência cardíaca em até 26% dos pacientes.


O avanço consistente da ciência oncológica, a partir dos anos 1990, permitiu que os pacientes vivessem mais. Se no passado o arsenal se limitava a cirurgia, radioterapia e a uma gama restrita de quimioterápicos, hoje o paciente é submetido a sucessivas combinações de drogas. Quando o primeiro esquema deixa de fazer efeito, há o segundo e o terceiro. A boa notícia esconde um paradoxo: a maior exposição a diferentes medicamentos pode comprometer a saúde do coração. A lógica é simples: mais drogas, mais efeito tóxico, mais dano cardíaco.

Com Nadja, foi assim. Há três anos, um câncer a fez perder a mama esquerda. Enfrentou sessões de radioterapia e de quimioterapia tradicional composta de uma combinação de três drogas. Recebeu também o Herceptin, um medicamento mais moderno e indicado quando o tumor de mama expressa a proteína HER-2 – o que o torna especialmente agressivo. Isso acontece em 20% dos casos – o de Nadja, entre eles.

A estratégia funcionou. Até que, em setembro do ano passado, ela começou a sentir fraqueza e falta de apetite. Pensou em tudo, menos na possibilidade que os exames comprovaram. Nadja tinha um novo câncer: uma leucemia mieloide aguda. “Foi um choque. Não podia acreditar que teria de enfrentar uma segunda doença em tão pouco tempo”, diz ela. O tratamento foi sofrido. Quarenta dias de internação, queda drástica da imunidade, sucessivas transfusões de sangue, febre, infecções, pneumonia. O coração acusou o bombardeio tóxico. Nadja começou a sentir tremores e taquicardia. Os exames revelaram o início de uma insuficiência cardíaca que poderia se agravar. Os médicos das duas especialidades (cardiologia e oncologia) discutiram o caso e agiram rápido.

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A mitoxantrona, uma das drogas da quimioterapia, foi substituída. Ao mesmo tempo, Nadja começou a tomar remédios para proteger o coração. Graças ao trabalho em equipe, a função cardíaca foi recuperada. “Depois de dois cânceres, nem me preocupei com o coração”, diz Nadja. “Quando percebem qualquer alteraçãozinha, os cardiologistas conversam com os oncologistas e logo mudam o esquema de tratamento. Perceber que eles trabalham em sintonia me deixou tranquila”, afirma.

A luta contra a leucemia continua, assim como o monitoramento constante do coração. Como Nadja se sente tão bem disposta, ela foi liberada para voltar a caminhar no parque e pelas ruas do Jaguaré, o bairro paulistano onde mora. Por enquanto, não pode bater asas para longe, mas tem vivido como gosta. Sempre em movimento.

Zelar pela qualidade de vida de quem enfrenta o câncer e de quem sobrevive a ele por longos anos é exatamente a razão de ser da cárdio-oncologia. Nada mais frustrante para uma equipe médica do que conseguir evitar a progressão de um tumor e ver o paciente morrer de um infarto provocado pelo tratamento oncológico. Ou de insuficiência cardíaca, derrame, trombose ou qualquer outra complicação cardiovascular provocada pelas estratégias de combate ao câncer.

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Se isso acontece com pacientes sem nenhum fator de risco cardíaco, como Nadja, a situação é ainda mais complexa quando a doença aparece numa pessoa com histórico de problemas cardiovasculares. “Antes, tudo o que o cardiologista podia fazer era dar boa sorte ao oncologista que ia tratar um paciente desse tipo”, afirma o médico Roberto Kalil Filho, presidente do Conselho Diretor do Instituto do Coração (InCor).“Hoje os dois profissionais traçam o tratamento juntos: definem as doses ideais dos quimioterápicos e pensam em formas de reduzir ao máximo os riscos cardiovasculares.” Kalil Filho tem especial interesse pela cárdio-oncologia. “É o meu xodó. A área de pesquisa que quero seguir pelo resto da vida”, diz.

A base para o relacionamento saudável entre as duas especialidades foi o lançamento da primeira diretriz nacional de cárdio-oncologia, liderada por Kalil Filho em 2011. Os mais influentes profissionais das duas especialidades se reuniram para avaliar as agressões cardíacas provocadas pelo tratamento oncológico, com base nas melhores evidências científicas internacionais. Chegaram a um consenso que foi adotado por profissionais em todo o Brasil. Era o início de uma cultura nacional de atenção cardiológica entre os oncologistas.

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De lá para cá, dezenas de novas drogas chegaram ao mercado. Nos últimos meses, as discussões foram refeitas para atualizar a diretriz. ÉPOCA publica com exclusividade as principais recomendações do documento que será lançado nos próximos meses pela Sociedade Brasileira de Cardiologia e pela Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica.

É um trabalho minucioso. Envolve a análise do conhecimento acumulado sobre centenas de drogas e esquemas de radioterapia e seus efeitos tóxicos. E também a definição do melhor caminho a seguir no dia a dia. O paciente não deve ser tratado com uma dose leve demais de quimioterápico porque é preciso bater forte no tumor. Nem pode receber uma quantidade elevada demais, a ponto de sofrer um dano cardíaco. O consenso orienta os médicos sobre o tipo de monitoramento que deve ser feito em cada situação – quais os exames necessários e quantas vezes ao ano eles devem ser realizados.

A definição do que fazer deve ser absolutamente personalizada, mas as diretrizes cumprem um papel didático e dão segurança no momento da decisão. Principalmente em hospitais distantes e sem fácil acesso ao conhecimento gerado nos grandes centros universitários. “O primeiro consenso teve o mérito de aumentar a conscientização dos médicos para as complicações cardiológicas. A palavra cárdio-oncologia deixou de ser um mistério no Brasil”, diz o oncologista Paulo Hoff, diretor clínico do Icesp. “A segunda edição tem um caráter bastante prático. Revimos orientações que eram difíceis de ser cumpridas em todas as regiões do país. Em alguns casos, ampliamos o intervalo de realização de exames como o ecocardiograma”, afirma.

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O documento ressalta que os danos são mais comuns entre os pacientes tratados com as drogas antigas. Um exemplo é a doxorrubicina, que faz parte da família dos antracíclicos. Ainda hoje, esse é o quimioterápico mais usado contra os tumores de mama, a leucemia e o linfoma. Em até 26% dos pacientes, o coração perde a capacidade de bombear sangue em volume adequado – a chamada insuficiência cardíaca. A agressão tóxica compromete o tecido cardíaco. Em grande parte dos casos, a lesão é irreversível. As consequências vão de cansaço e falta de ar à morte. O remédio que afetou o coração de Nadja, a mitoxantrona, pertence ao mesmo grupo. Por sorte, os médicos estavam atentos aos primeiros sinais de dano cardíaco.

A preocupação deles não se resume aos antigos recursos. O novo consenso aponta os riscos relacionados a medicamentos modernos, conhecidos como terapia-alvo. A indústria farmacêutica divulgou os primeiros lançamentos desse tipo, há 15 anos, com metáforas exageradas. Eles eram chamados de “balas mágicas” ou “mísseis teleguiados”. A intenção era ressaltar a ideia de que, diferentemente da quimioterapia tradicional, esses remédios seriam capazes de atacar as células tumorais sem agredir as sadias.

Remédios de uma das categorias mais novas causam hipertensão, insuficiência cardíaca e coágulos em 7% dos pacientes
“O tempo mostrou que as terapias-alvo não são tão alvo assim”, diz a cardiologista Ludhmila Abrahão Hajjar, uma das responsáveis pela condução do novo consenso. Ela acumula a coordenação de UTIs em três importantes hospitais: InCor, Sírio-Libanês e Icesp. A explicação para os efeitos adversos observados: o mecanismo que combate a célula tumoral é o mesmo que agride o coração. Um exemplo é a categoria dos chamados inibidores de angiogênese, um recurso importante no combate ao câncer de intestino, estômago, pulmão, rins, entre outros. O objetivo dessas drogas é matar o tumor de fome ao inibir o crescimento de vasos sanguíneos que fornecem energia a ele. Um dos alvos que eles buscam é um fator de crescimento chamado VEGF. Ao bloqueá-lo, conseguem combater a proliferação do câncer.

O benefício é grande. O risco também. Em cerca de 7% dos pacientes, essas drogas provocam graves problemas cardiovasculares, como hipertensão arterial, insuficiência cardíaca e formação de coágulos nas veias. A razão foi revelada depois dos primeiros relatos de complicações, quando os pesquisadores decidiram estudar a biologia das células cardíacas.
A descoberta exigiu a revisão de algumas condutas médicas: o mesmo VEGF e outros fatores presentes na célula tumoral são fundamentais para a integridade do músculo cardíaco. Um remédio desenhado para atacar esses alvos na célula tumoral destruirá, também, um mecanismo de fundamental importância para a saúde cardíaca.

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A solução proposta pela cárdio-oncologia: inibir esses fatores para conseguir matar o tumor de inanição. E, ao mesmo tempo, cuidar de todos os fatores de risco cardíaco. Manter a pressão arterial abaixo de 13 por 8 (com anti-hipertensivos, quando necessário), recomendar atividade física, dieta equilibrada, controle do colesterol e acompanhamento rigoroso da condição cardiovascular.

Por enquanto, esses são os recursos disponíveis. A busca por recursos capazes de blindar o coração dos pacientes submetidos ao tratamento do câncer é intensa. Mas os pesquisadores ainda não conseguiram criar grandes drogas de prevenção de complicações cardiovasculares sem reduzir a eficácia antitumoral. Esse é mais um motivo para que os médicos conheçam e sigam novas diretrizes.

“Precisamos reduzir os casos de pacientes oncológicos que morrem do coração e não do câncer, algo cada vez mais frequente no país”, diz a cardiologista Ludhmila. Segundo ela, a situação mais comum é a dos sobreviventes de câncer no sistema linfático (linfoma) tratados há mais de dez anos com antracíclicos. “Após vencer o câncer, muitos voltam anos depois com o coração sem chance de recuperação. É muito triste”, diz ela. Quando o problema ocorre nas artérias coronárias, a situação é menos grave. Pode ser revertida com um stent (dispositivo metálico para restabelecer o fluxo sanguíneo) ou outro procedimento de revascularização. Quando envolve a falência do músculo cardíaco, nem sempre há o que oferecer.

No Brasil e no exterior, fora dos grandes serviços especializados, é comum que os médicos sejam surpreendidos pelos efeitos adversos. “Os problemas cardiovasculares provocados pelo tratamento do câncer são a segunda causa de morte desses pacientes – atrás apenas da recorrência do tumor”, disse a ÉPOCA o professor Daniel J. Lenihan, da Universidade Vanderbilt, no Tennessee. Um dos maiores expoentes da cárdio-oncologia no mundo, Lenihan ressalta a importância da atualização periódica de diretrizes nacionais como as brasileiras. “A frequência de sustos deve aumentar no futuro porque surgiram muitas drogas novas nos últimos anos e falta experiência clínica com elas”, afirma.

Mais do que um susto. A empregada doméstica Maria Alexandrina da Silva, de 39 anos, achou que estava à beira da morte quando sofreu uma grave insuficiência cardíaca, em 2011. Os médicos também acharam que talvez ela não sobrevivesse. No ano anterior, Maria havia descoberto um tumor na mama direita. Passou por cirurgia, quimioterapia tradicional (com drogas da família dos antracíclicos) e 33 sessões de radioterapia. Em março de 2011, começou a receber também o medicamento Herceptin – mais moderno e indicado para pacientes com o perfil genético dela. Dois meses depois, o tratamento precisou ser suspenso para preservar o coração.

Era uma emergência. Às 3 horas da madrugada, uma intensa falta de ar despertou Maria em Carapicuíba, na região metropolitana de São Paulo. Assustada, ela se sentou na cama. “Achei que fosse morrer ali mesmo”, diz . Carregada, ela entrou no táxi que acelerou até o Icesp. Ao perceber a gravidade, os médicos chamaram uma especialista do Instituto do Coração (InCor), ligado ao hospital de câncer por um túnel estratégico. Os exames revelaram que a fração de ejeção do coração de Maria, um indicador de insuficiência cardíaca, estava em 15% (o parâmetro normal é de 55%). “Era um caso gravíssimo”, diz a cardiologista Carolina Carvalho Silva, do Icesp. Segundo ela, a paciente não tinha nenhum fator de risco cardiovascular que pudesse explicar o que aconteceu. “Se os sintomas de insuficiência cardíaca persistissem naquele nível, ela poderia ser encaminhada para um transplante cardíaco.”

Maria passou 15 dias internada – três deles na UTI. “Nunca mais usei o Herceptin”, afirma. A melhor conduta foi estudada por cardiologistas e oncologistas em constantes conversas. Além de suspender o medicamento contra o câncer, os médicos tentaram tratar a insuficiência cardíaca com diferentes medicamentos. “Quando a minha fração de ejeção chegou a 45%, a oncologista disse que ia soltar uma caixa de rojões. Ficaram muito felizes com minha recuperação”, afirma. Maria voltou a trabalhar. Agora é cuidadora de idosos. Correr não é tão fácil, mas ela caminha, dança e se diverte. A recuperação de pacientes como Maria e Nadja é o melhor fruto de um diálogo médico essencial.

 

 

Fonte: ÉPOCA